Entrou devagar e caminhou muito direita em direcção à secretária. Sentou-se e fixou o olhar na janela em frente. Relembrei, num minuto, o que sabia dela: doente do sexo feminino, 39 anos, licenciada em Design, internada compulsivamente por ordem judicial há duas semanas, diagnóstico ainda incerto. "É uma doente muito linda", tinha dito a médica que a tinha internado. "Muito linda?", perguntei na altura sem perceber o alcance do adjectivo. A médica respondeu com um sorriso. Conheci doentes tristes, doentes corajosos, doentes enternecedores. Esta doente seria a minha primeira doente "linda". Olho novamente para a doente sentada à minha frente. Avalio o olhar: ausente... Ausente do consultório, da minha presença, ou mesmo dela própria? Fico com a dúvida. Avalio a postura: disciplinada, direita, pernas cruzadas ligeiramente inclinadas, mãos pousadas levemente nas pernas, uma sobre a outra. O cabelo longo, liso e já grisalho desliza pelas costas emoldurando o rosto magro e sem expressão. Sorrio e cumprimento: "Boa tarde, Inês." Os olhos movem-se na minha direcção, condenando-me pelo atrevimento de matar o silêncio. Continuo, decidida a prender a sua atenção o maior tempo possível: "Como se sente hoje, Inês?". Passa os dedos lentamente pelos cabelos e diz-me: "O Eduardo não pode falar comigo. São os medicamentos. Devem assustá-lo, suponho." "Quem é o Eduardo?", pergunto. Olha para mim com ar de enfado, suspira, passa novamente os dedos pelo cabelo e diz: " O Eduardo é o meu namorado. Fomos predestinados." Os meus olhos varrem as páginas do processo clínico à minha frente, à procura de alguma referência a um namorado. Não encontro. Pergunto: "O Eduardo tem vindo visitá-la?". Ignora a minha pergunta. Volto a insistir: "Há quanto tempo não fala com o Eduardo?". Sem tirar os olhos da janela começa a contar a sua história. Não fala para mim, nem tão pouco para ela. Não fala para alguém. As palavras desprendem-se da boca sem pressa, sem a ambição da lógica, sem a tentativa de imposição no tempo. Deslizam com mágoa para o vazio. Desfazem-se nesse ponto infinito da janela que os seus olhos não largam. "O Eduardo é jornalista e mora em Gaia. Ele fala comigo. Nós vamos ficar juntos. Estamos predestinados." Pára por um momento e retoma: "Agora já não fala. A Sedemia de Portugal... Eu não preciso da ajuda dela. Nós não precisamos." "Que organização é essa?", pergunto, tentando desviar a entrevista para algo menos emocional. "A Sedemia é a organização dos homens que têm a missão de elevar toda a mulher a um pedestal. Todas as mulheres merecem ser elevadas e amadas pelo homem que amam. Há um homem que passa na minha rua todos os dias. Ele pertence à Sedemia. Disse-mo o Eduardo. Quando o homem passava, o Eduardo dizia "Olha Inês, um homem da Sedemia". Mas, eu sempre disse ao Eduardo que nós não precisávamos disso. Nem precisamos. Somos felizes." Pausa. Passo novamente os olhos pelo processo. Referência ao pai, ao irmão... Nada do Eduardo. O silêncio continua. Inês não parece incomodada com o silêncio. Talvez para ela o silêncio não exista. A mágoa faz barulho. Um barulho constante. O barulho que Inês ouve no silêncio da sala. Tento trazer a atenção de Inês de novo para a minha voz: "Há quanto tempo não vê o Eduardo?". Volta-se para mim, abandonando o ponto infinito na janela e murmura: "Há sete anos". Fico confusa. O meu passado seria presente para ela? Um tempo que se arrasta, talvez... Fico imersa em raciocínios de lógica, tentando organizar um esquema mental do que foi antes e depois, do Eduardo de há sete anos que não fala com a Inês de hoje por causa dos medicamentos... Folheio o processo mais uma vez. Numa página está escrito: "Eduardo, personagem fictícia..." Eduardo, personagem fictícia, repito para mim mesma. Eduardo que nunca houve. Entretanto, Inês tinha regressado ao seu porto de abrigo: o ponto infinito na janela. Pergunto: "Inês, há quanto tempo não fala com o Eduardo?". Sem tirar os olhos da janela,responde: "Há uns dias. Mas, quando voltar para casa, ele regressa. São os medicamentos. Não me deixam ouvi-lo." Silêncio. Na minha mente passaram imagens de um Eduardo que nunca existiu no mundo, de uma Inês que não conseguia existir para o mundo, de todo o mundo que nunca conseguirá existir para Inês. Resta aquele ponto infinito na janela. Fecho o processo clínico. Olho para a minha doente, concentrada no tal ponto de tensão na janela. Aquela médica tinha razão. É uma doente linda, como nenhuma outra pode ser. Porque é a primeira. Porque me devolveu à humanidade.
Não aconteceu assim, mas poderia ter sido assim. A todos os doentes lindos do Serviço de Psiquiatria que devolveram as limoas, mais uma vez, ao "rés-do chão".
Não aconteceu assim, mas poderia ter sido assim. A todos os doentes lindos do Serviço de Psiquiatria que devolveram as limoas, mais uma vez, ao "rés-do chão".
4 comentários:
:)
um dos previlégios do que fazemos é essa dádiva por retribuir que cada vida, a cada passo nos devolve a nós mesmos...
ju lindíssimo
:)
ai a coisa..privilégios..isto de exames com cruzinhas tolda-nos a mente...
Sao historias assim que nos contam que as coisas realmente importantes na vida sao muito poucas... e que e feliz todo aquele que vir na humildade, no amor, na esperanca, no respeito pelo outro, na solidariedade e em toda a forma de humanidade uma prioridade.
Sao tao traicoeiras as areias movedicas em que caminhamos... tenhamos o bom senso de dar as maos.
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