Não consegui ainda decidir se tenho saudades dos seis anos passados dentro daquelas paredes.
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Lembro-me que a minha primeira impressão da faculdade foi: deviam pintar as paredes. A segunda foi enquanto me arrastava de gatas ("quatro, caloira!") pelos corredores do hospital ("dura praxis sed praxis"): estas janelas não devem ser limpas há muitos anos (tinham um aspecto de vidros fumados em tons de castanho...não saberia dizer se para esconder o mundo doentio da vida que continuava indiferente lá fora ou se para esconder em jeito de misericórdia o que a vida poderia ter sido aos doentes cá dentro). A terceira foi quando os "doutores de praxe" permitiram que me levantasse: dei de caras com uma vista muito pouco esperançosa para o cemitério de Paranhos do alto do 6º andar (sim, sim andamos de gatas desde o rés do chão). Lembro-me que estas impressões deprimentes contrastavam com a minha felicidade, com a minha vontade plena de fazer daqueles anos os mais proveitosos da minha vida e sobretudo com a minha alma lavada, clara, transparente disposta a aceitar todos os desafios, dificuldades e sobretudo humanidade e conhecimento que aqueles anos me poderiam proporcionar.
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E agora, que recordo este momento à distancia de quase sete anos, vejo o que não entendi na altura. Esse prenúncio evidente. Que é impossível sair com uma alma imaculada depois de seis anos a viver naqueles corredores. Porque a mágoa de tantas histórias tristes entranha-se. Porque reconhece-se que o conhecimento é demasiado volumoso e rasga as costuras. Porque se aprende a aceitar a aleatoriedade da vida e da morte e isso corrói. Porque se acaba um curso com uma idade muito mais pesada que os 23 anos que o BI documenta. A minha alma sai dessas paredes suja, rasgada, corroída e muito, muito mais humana.
Nesse mesmo dia em que descobri os corredores sujos do hospital, alguém importante discursou para os novos alunos e disse algo parecido com isto (não posso precisar as palavras exactas):
Se querem descobrir a beleza e o brilho da sociedade apreendidas do topo de um arranha-céus enganaram-se na casa; se querem ver o vosso trabalho cristalizado em cada esquina... deviam ter escolhido arquitectura. Aqui só vão encontrar a podridão, o feio, a cave da sociedade onde é atirado tudo aquilo que não se quer ver nas esquinas da nossa sociedade. Aqui o reconhecimento não está esculpido em pedras. Aqui é tudo um olhar.. que não fica registado.
No mesmo dia em que saí daqueles corredores sujos, passados seis anos, alguém importante olhou para mim nos olhos e disse: cada médico carrega um cemitério privado: dos doentes que viu e não descobriu, dos que viu e descobriu mal, dos que viu, descobriu e tratou mal e dos que decidiu não ver. Desejo-lhe um cemitério pequeno..
Saudades da FMUP? Saudades deste processo longo e difícil em que todas estas palavras começam a fazer sentido? Não..
terça-feira, junho 30, 2009
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3 comentários:
Ainda bem que num tens saudades. Mais vale ter saudades das pessoas do que das instituições :o)
Bom resto de semana :o)
Eu também ainda n percebi se tenho ou não saudades da FDL (Faculdade de Direito de Lisboa). Do ponto de vista do convívio, claro que sim. Agora do ponto de vista meramente académico...não sei.
Ao contrário de vcs, nós só temos um contacto com a realidade dps de lá sairmos. Enquanto lá andamos, somos "virgens" da realidade, achamos que é tudo mto fácil e mto bonito pq tiramos boas notas e até temos jeito p aquilo. Mas dps vimos cá p fora e muda tudo.
No entanto, penso que tb saímos de lá com mais idade do que a que consta no BI, se bem que p vcs é mais duro, na minha opinião. Nós, apesar de sermos pisados e repisados ao longo do curso, não temos contacto humano com o exterior, ficamos ali numa redoma...e dps qdo saímos e nos deparamos com a realidade, o choque é muito maior!
It's a jungle out there! :)
Nenhumas saudades da FMUP. Saudades sim de nós, não da FMUP, venham de lá os que dizem na faculdade é que era bom etc etc.
Ju tb ja tenho o meu cemitério e que agonia me provoca.
Ps: quando tiver net em casa posto prometo, ali o do euromilhões deu-me cá um pruriddo na ponta dos dedinhos, ehehe.
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