quinta-feira, março 18, 2010

O Sr Hilário

O Sr Hilário é um senhor de 82 anos muito conhecido na cidade costeira onde vive. Foi barbeiro. Daqueles à moda antiga, muito educado e cavalheiro, que sabe conversar sobre qualquer assunto sem sobranceria. O Sr Hilário tem cancro da próstata terminal. Sempre que vem ao Centro de Saúde fala sobre os tratamentos no IPO, ou melhor, sobre a ausência deles ("A Sra doutora já apontou aí no computador que eu fiz aquela hormona não foi?" "Já não estou a fazer mas é melhor estar assente aí não vá ser preciso voltar a fazer.."). No rosto está sempre uma pergunta que não faz, uma pergunta iminente silenciosa: "Por que será que já não faço tratamentos?". A pergunta não é feita. Mas penso que a resposta salta nos meus olhos porque o Sr Hilário olha para o chão e diz: "Não é preciso a Sra doutora passar as credenciais para o transporte de ambulância. Ainda não recebi nenhuma carta para ir à consulta do IPO. Já não vou há algum tempo. Devo estar a ser chamado não é Dra?" Sorrio e remexo nos papéis. Sinto que a minha expressão facial está a ser estudada ao pormenor. Tento abstrair-me. Na minha cabeça apenas o conselho da minha orientadora " O Sr Hilário não reagiu bem à notícia da doença. Tentou cometer suicídio. Com uns comprimidos da filha. Esta a ser seguido na psicóloga do IPO. Não sei se já sabe que não vai fazer mais tratamentos. É melhor serem eles a dar a notícia." Respiro fundo e refugio-me nas perguntas habituais. "Precisa de medicação? E a diabetes? E as tensões?" O ambiente alivia e retorno com cuidado a terreno difícil. "E a família? A sua filha vem dormir lá a casa de noite? Não? E as suas netas? Também não? E é o senhor que cozinha? O que acha de eu falar com a sua filha para ela ir lá dormir?" Do outro lado apenas um suspiro e uma frase apenas " É complicado". Volto a olhar para a pilha de papéis. Na minha frente uma vidraça mostra um pedaço de relva colonizado por uma família de melros. O Sr Hilário continua a olhar para o chão. E eu regresso às perguntas. "E as suas costas como andam?" O Sr Hilário faz um esgar de dor e diz que mal. Na minha cabeça a ideia metástases ósseas e dor começa a agoniar-me. Prescrevo um analgésico forte. Com codeína. Mas sei que não chega. É preciso falar com alguém superior que saiba prescrever algum derivado da morfina. O Sr Hilário sai curvado do consultório. Entra a minha orientadora em silêncio. Uns minutos em silêncio. Mexemos em pedidos de receita, organizamos alerts (pedidos de consulta) sempre em silêncio. "Qualquer dia o Sr Hilário atira-se para a linha do comboio" desabafa a minha orientadora. A cara dela é o espelho do desalento. E eu volto a sentir-me agoniada. Eu sei que o Sr Hilário está perto disso.

1 comentário:

lemon_sees_the_light disse...

Há coisas que por mais que lidemos, nunca nos iremos habituar.. :/